Baseado no Livro “A Rainha dos condenados” das Crônicas Vampirescas de Anne Rice (1988, ANTES da modinha de crepúsculo)
A noite caiu mais uma vez sobre Los Angeles. Para a maioria das pessoas não fazia a mínima diferença. A cidade continuava perfeitamente clara e iluminada de qualquer jeito. Mas para Armand essa diferença era crucial. Vital.
Empurrou sem esforço a tampa do caixão aveludado e a primeira coisa que fez foi caminhar rumo ao quarto de seu amado Daniel. Seu Daniel Mortal.
Encontrou o ex-jornalista em pé em frente à janela, contemplando a lua recém nascida. Provavelmente estava se perguntando quando é que ele, Armand, despertaria.
- À minha espera?
Daniel virou-se para contemplar seu mestre, revelando assim uma cara macilenta com imensas olheiras que haviam tomado conta de praticamente toda a face. Uns fiapos de barba cresciam irregulares em seu rosto e davam a ele um aspecto extremamente velho.
Ao ver seu amado em uma condição tão mortal, tão efêmera, tão perecível, Armand teve vontade de lhe conceder o Dom das Trevas. Teve vontade de dar a ele aquele poder do demônio e devolver-lhe a juventude e a beleza que cansaço nenhum poderia tirar. Teve uma vontade momentânea de fazer tudo aquilo que sabia que não conseguiria fazer. Mas foi tudo por um breve momento e logo a vontade passou.
- Respeite seu organismo, Daniel. Ele não consegue acompanhar meu rítimo. Olhe só pra você… está acabado!
- Então me transforme em um de vocês! - O jovem jornalista clamou pela milésima vez naquela semana.
Armand apenas o ignorou enquanto pegava sua capa e dizia:
- Venha, vamos caçar.
“O seu vamos significa vou” pensou Daniel enquanto se dirigia à rua, a boca salivando de inveja.
- Eu posso ouvir seus pensamentos, jovem mortal.
Foi a vez de Daniel de ignorar o companheiro. Apenas caminhou atrás deste, tentando adivinhar quem seria a vítima da noite. Estava há tanto tempo com Armand, o conhecia tão bem… ele sabia que o vampiro preferia presas marginalizadas às inocentes. Poderia jurar que dessa vez seria uma prostituta. E lá estava Armand, apenas alguns minutos depois, se aproximando de uma.
Ah, Daniel conhecia tão bem aquele processo. Vira Armand executá-lo tantas vezes. Sabia passo a passo o que ia fazer. Todos os seus movimentos. Primeiro ia mostrar seu dinheiro àquela mulher, depois ia encostá-la na parede e começar a beijá-la meio compulsivamente enquanto ela lhe roubava a carteira furtivamente e ele fingia que não percebia. Depois, muito lentamente, Armand ia descendo a cabeça fingindo prazer até encontrar o pescoço de sua vítima, onde começava com beijos carinhosos e lentos até dar a mordida fatal. Nessa hora Armand provavelmente iria enforcá-la com o próprio colar para que ela não pudesse gritar e então tomaria seu sangue até o fim, observando sua expressão de horror crescer a cada segundo. Depois da morte inevitável da mulher, ele jogaria seu corpo num canto, puxaria uma adaga e apunhalaria sua barriga diversas vezes. Agarraria um rato ou qualquer outro bicho que estivesse por ali e o perfuraria com suas enormes unhas vitrificadas, jogando todo o sangue do animal por cima do cadáver fresco da mulher, para não levantar suspeitas. Mas não achava realmente que alguém ia se importar, era “só” uma puta. A sociedade não ligava para elas, não iriam investigar sua morte.
O palpite de Daniel foi bom. Aconteceu exatamente daquele jeito.
- Este sangue… estava incrivelmente doce. - Comentou o vampiro se aproximando.
- Você nunca vai me deixar experimentar, não é? Nunca vou saber qual é a sensação, nunca vou sentir o gosto.
- Não. - A sinceridade de Armand explodiu em sua boca e provocou um certo desespero em Daniel.
- Eu achei que você me amava! - Falou quase gritando.
- Mas eu te amo, Da…
- Pois eu não vou durar pra sempre, Armand! Um dia eu vou morrer e apodrecer. E aí… você já não vai poder fazer nada.
- A idéia da sua morte me apavora. Mas o que eu gosto em você é justamente a sua mortalidade. Eu simplesmente não posso te dar o Dom das Trevas. Eu não… eu não suportaria olhar pra você!
- O que há de bom em ser mortal? O que em mim chama tanto a sua atenção?
- Você perderia toda sua ternura e inocência se ganhasse a imortalidade. É uma troca. E você é pura ternura e inocência. A idéia de te ver sem isso é inconcebível pra mim.
- Você está sendo muito… egoísta. Você olha pra mim e me vê morrer aos poucos, noite após noite. - Daniel proferiu as palavras com fúria, mas também com medo da reação de Armand.
Contudo, não houve reação alguma. O vampiro secular pôs-se a andar pela rua, certo de que seu amado mortal o acompanharia. Andaram por muito tempo (ambos calados) até que Armand avistou uma propriedade abandonada. Em questão de segundos estava do outro lado do muro.
- Venha até aqui. - Chamou por Daniel e em seguida riu ao ver as tentativas frustradas do homem de tentar pular o muro alto. Era essa a mortalidade que ele tanto amava. E que em breve se perderia para sempre.
Quando enfim Daniel pôs os pés no jardim morto da residência, Armand correu para dentro da casa enquanto falava mentalmente com Daniel: “vou lhe dar o presente. O que você acha que deseja”.
Daniel seguiu-o sem saber o que fazer ao certo. Sentia uma sensação de triunfo deliciosa.
- Deite-se. Vai ser agora. Lembre-se: é um caminho sem volta.
O jornalista obedeceu. Deitou-se no chão rangente de madeira esperando pelas presas de Armand. Esperando pelo sangue de Armand. Esperando pela imortalidade.
Armand posicionou-se sobre Daniel pronto para o que deveria fazer. Sem querer deixou escapar uma lágrima, que caiu na testa de seu amado mortal.
- Você não tem o direito de chorar, Armand. Não é justo. É o meu renascimento! - Apesar de tudo, sentia-se alegre.
- Psiu!
Daniel conhecia tão bem os vampiros que já se sentia um deles há muito tempo. E era por isso que Armand devia transformá-lo. Ele sabia o que viria a seguir. Armand deveria mordê-lo como se morde uma vítima. Deveria tomar seu sangue até deixá-lo à beira da morte. Então cortaria o próprio pulso e daria algumas gotas para ele tomar. Junto com o sangue de Armand, a imortalidade lhe invadiria o corpo. E o processo começou.
Armand se curvou até o pescoço de Daniel e cravou seus longos caninos sobre a jugular deste, mas não sem antes analisá-la. O lindo jeito como a pulsação daquela veia acompanhava as batidas do coração. Daniel não pôde deixar de gritar. A dor… aquela dor que antecedia a melhor coisa que iria lhe acontecer.
Com gosto, Armand drenou o sangue de Daniel até o limite da vida. Então parou, afastou-lhe os cabelos da testa suada e contemplou-o arfar, buscando o ar que lhe faltava. Apesar de apavorado, Daniel continuava ansioso pelo gosto do sangue. Mas ao menos conseguia sorrir ou demonstrar qualquer outra expressão. Estava muito fraco.
O vampiro saiu de cima de sua presa e sentou-se ao lado dela, dessa vez com compaixão. Sentia muito por aquilo ter que acontecer.
- Armand… rápido… - Balbuciou Daniel. Sua voz sumira. Mal podia esperar pelo sangue de Armand. Mas o único sangue que sentiu foi o seu próprio, em sua última golfada de vida.