domingo, 14 de junho de 2009

Os fantasmas que estragaram o natal


Os pés de Keven avançaram rápidos pelo mato rasteiro que dava uma cor esverdeada à constante névoa que impedia uma visão ampla do cenário sombrio onde se encontrava a mansão número 4 daquela rua. Marina corria para alcançar seu amigo, fazendo seus cabelos loiros balançarem. O único brilho naquele lugar sombrio vinha deles.
Keven parou ao alcançar a porta de madeira comida pelos cupins e voltou-se para a garota:
- Achei que você tinha dito que não viria.
- Eu não vou te deixar entrar sozinho. Afinal, o que você veio fazer aqui mesmo, Keven?
Antes de responder a pergunta dela, Keven desmentiu-a. Seu orgulho o enojava algumas vezes.
- Mentira! Você é que não quer ficar sozinha aqui fora. Acorda, Marina, já houve três duplos homicídios nessa casa. Você não queria viver uma aventura? Está aí a sua aventura! Excitante, não é?
A menina não respondeu, não queria que seu colega percebesse que estava com medo, apenas seguiu-o pela na trajetória pela casa. No início não havia nada incomum. Apenas muita poeira e teias de aranha, mas isso tudo era normal, afinal, eles estavam em uma casa abandonada. Somente uma coisa incomodou Marina, que esperta, logo percebeu que as luzes da casa não deveriam estar acesas já que ela não era habitada há anos.
Já tinham percorrido dois dos cinco andares da mansão tão temida pelos moradores da pequena cidade quando os estranhos eventos começaram a acontecer. Enquanto subiam as escadas rumo ao terceiro andar, sentiam a madeira velha dos degraus ranger sob seus pés a cada passo. O relógio de pêndulo situado no segundo andar bateu onze horas, produzindo um barulho ensurdecedor que assustou Marina ao ponto de fazê-la cair aos pés de Keven e agarrar as canelas do amigo.
- Os fantasmas estão aqui, Marina. - Ele falou pausadamente.
- O que??
- Consulte seu relógio e verá que estou certo. Há alguém aqui.
Amedrontada, ela obedeceu, consultando seu pequeno e delicado relógio de pulso. Os ponteiros marcavam exatamente onze horas. Como o relógio da casa poderia marcar a hora certa se supostamente pertencia a uma residência abandonada há décadas?
O próximo cômodo que o curioso Keven visitou ao chegar ao terceiro piso, foi uma espécie de biblioteca. Ele nem tentou olhar o conteúdo dos milhares de livros que haviam ali, pois as traças já haviam corroído boa parte deles. As luzes de toda a casa se apagaram quando um raio atingiu um poste do outro lado da rua ao mesmo tempo que a chuva desabou.
- Keven... vamos embora! - O pedido de Marina mais parecia uma súplica. Mas invés de atendê-lo, Keven se largou em uma das poltronas cheias de pó do cômodo.
- Agora está escuro, loirinha. Não dá pra a gente voltar nem continuar. Não consigo enxergar um palmo na frente do nariz, se formos descer escada num escuro desses, é bem provável que os fantasmas nos peguem em uma de suas armadilhas.
A "loirinha" formou em seu rosto uma expressão de impaciência que mostrava bem o que ela estava sentindo naquele momento.
- Você não quer mesmo que eu acredite nisso, não é? - Falou.
- Como assim? Você não acredita em fantasmas?
- É lógico que não, idiota!
- Achei que todo mundo acreditasse... mas se você não acredita, porque está com medo? E não me venha falar que não está com medo.
A expressão de impaciência mais uma vez tomou conta do rosto fino da menina. Ela girou os olhos para cima e suspirou profundamente antes de responder:
- Sim, eu estou com medo. Mas é um medo irracional, Keven. Nossa mente cria ilusões para nossa própria defesa.
- Ah, vai me dizer que a tempestade lá fora e a queda de energia também são ilusões da nossa mente? Senta aí, Marina. Tenho certeza que você só não acredita em fantasmas porque nunca ouviu a história dos amantes que estragaram o natal.
- Você não vai começar a contar histórias de terror agora, vai?
Keven fechou a cara por alguns segundos. O descaso que sua amiga fazia do assunto o irritava profundamente.
- Não é uma historinha de se contar em acampamento. Aconteceu de verdade! De qualquer jeito a gente vai ter que esperar aqui. Deixe-me contar a história, chatinha.
Com o silencioso consentimento de Marina, Keven começou a história usando palavras difíceis e atribuindo muitos adjetivos à todas as coisas, dando um misticismo desnecessário àquela narrativa que já era bastante aterrorizante. Ela falava sobre dois adolescentes: Mírian e Calebe, que costumavam ser muito amigos, mas quando começaram um relacionamento amoroso, essa amizade se acabara, pois se amavam demais, e esse amor era, principalmente da parte de Calebe, doentio. Os constantes acessos de ciúme deram espaço para brigas que já tinham virado rotina. Quando o jovem Calebe se deparou com a pessoa que mais amava triste e magoada, tentou voltar atrás e rompeu seu namoro de quatro anos, pensando em reestabelecer a amizade de outrora. O que ele não tinha previsto, era o ressentimento que havia ficado entre os dois. Sua amizade com Mírian jamais seria a mesma.
- O amor dele pela amiga era incondicional e ele não aceitaria perdê-la tão facilmente. - Contava Keven - Então, Calebe fez sua difícil decisão e chamou Mírian para almoçar em sua casa na véspera de natal. O almoço foi ótimo e agradável, visto que a família dele adorava a dócil e mimada menina. Apenas após o almoço foi que Calebe resolveu colocar seu plano em prática. Chamou-a para passear nos jardins e foi quando a tragédia aconteceu. Com um punhal herdado de seu avô, o rapaz perfurou a fina camada de pele que envolvia a barriga de sua amiga, matando-a de hemorragia em pouco tempo. Antes que sua família notasse o crime, ele virou a lâmina da arma para seu próprio peito e se matou, condenando Mírian a passar o resto da eternidade com ele e estragando o natal de pelo menos duas famílias. Os dois nunca mais ficaram sozinhos, nunca mais poderiam se queixar de solidão. Agora os dois têm um ao outro. Sabe qual é o mais interessante, Marina? Essa triste história aconteceu há quarenta e quatro anos atrás, nessa mesma casa sombria em que nos encontramos agora. Após esse trágico evento, os fantasmas de Mírian e Calebe assombram a mansão e tentam convencer todo casal que coloca os pés aqui a fazer o mesmo que eles fizeram.
Marina se ajeitou na poltrona. seus olhos já haviam se acostumado com o escuro e agora ela podia ver o semblante de Keven, fitando-a fixamente. Mesmo com os pêlos loiros do braço arrepiados e um frio na barriga que denunciava seu medo, a menina falou com desdém:
- Você não é um bom contador de histórias, sabe? E essa daí em particular é bem clichêzinha, viu. Se você queria me convencer de alguma coisa, não conseguiu.
Antes mesmo que Keven pudesse rebater com uma das respostas mal educadas que vieram em sua mente, as luzes se acenderam novamente, assustando os dois. Eles olharam a sua volta e analisaram o local, que parecia estar bem diferente do que era antes de faltar luz.
Alguns livros estavam caídos no chão e alguns móveis estavam em outra posição. Talvez a mente dos garotos estivesse mesmo brincando com eles, talvez as coisas já estivessem assim e eles não tinham prestado atenção. A única coisa que provou que alguém realmente estivera ali, foi o fato de que a cadeira de balanço ao lado de Marina balançava. E balançava forte, como se alguém tivesse acabado de se levantar dela.
Assim como sua amiga, Keven tinha medo, mas ao contrário dela, ele se levantou com um pulo e foi atrás da pessoa ou seja lá o que fosse que tivesse feito aquilo. No exato instante em que ele deixou o confortável encosto da poltrona, uma luz tão ou mais brilhante que os cabelos de Marina tomou conta do ambiente e se materializou em forma de uma linda menina descalça com um vestidinho de renda branco.
- Em que posso ajudá-los? - Sua voz era tão fina que Marina teve certeza de que poderia matá-la de agonia se a ouvisse por um bom tempo.
Keven quase não conseguia falar de tanto espanto. Sua boca se abriu e fechou umas três vezes antes que ele conseguisse pronunciar uma palávra quase inaudível:
- ... Mírian...
- Ah, eu entendo. - A menina balançou a cabeça afirmativamente - Você veio matá-lo, não é? - Ela se dirigia à Marina.
Tomado pelo desespero, Keven conseguiu falar em alto e bom som alguma coisa que fizesse sentido:
- Marina, não ouça nada do que ela disser, ela vai tentar te convencer! - E voltando-se para a pequena aparição feminina - Seu monstro, não ouse fazer nada comigo! Você não vai conseguir me convencer!
- Eu?? - A fantasma riu. Sua risada conseguia ser mais fina e agoniante que sua voz. - Quem vai fazer alguma coisa aqui é você. - Ela virou os olhos para Marina - Ou você. Sabem, as pessoas costumam culpar a mim e a meu amado Calebe. Mas nós não temos absolutamente nada a ver com isso. Os casais já vêm aqui com essa ideia na cabeça, não somos nós que os manipulamos. Se não fosse isso, por qual outro motivo eles viriam aqui? Para ter um passeio romântico é que não é.
- Nós não somos um casal. - Defendeu-se Keven.
- Oh, não? Não seja tolo! Você sabe que os sentimentos dela por você são os mesmos que os seus. A única coisa que falta é iniciativa. Porque você não conversa com ela? Tem medo? Medo da possível rejeição? Medo de perdê-la? Talvez seja por isso que você a trouxe aqui.
Agora sim Marina deixava transparecer seu medo. Agora seu medo era totalmente racional.
- Keven... É por isso que você não quis ir embora! Seu... maldito! Eu te odeio! - Suas últimas palavras foram mais rosnadas do que faladas. Marina deixara sua primeira lágrima pingar no carpete cor de vinho daquela sala arrepiante.
- Loirinha! Você sabe que eu não... você está desconfiando de mim? Logo de mim? Eu que sempre te apoiei! Eu não vim aqui pensando nisso, se você quer saber, mas agora até que seria bom arrancar esse seu coração impuro e beber seu sangue sujo! Você me dá nojo, Marina, nojo! - Falou Keven surpreendendo a si mesmo. Em condições normais, ele jamais falaria coisas como essas.
Os dois já nem se importavam com a presença de Míriam. A antiga amiga de Keven parou para respirar entre soluços antes de recomeçar os insultos. Seu coração batia demasiado rápido, sua adrenalina estava à mil. Sentiu-se fraca de repente e se apoiou em uma pequena mesa redonda de vidro, mas ao fazer isso, sentiu a ponta metálica de um objeto que, por mais que forçasse sua mente, não conseguia lembrar de ter visto naquele lugar. Era um revólver antigo, daqueles que só se via em filme. A menina segurou-o com firmeza, pronta para atirá-lo longe caso Keven tentasse pegá-lo.
- O que foi? Ficou sem palavras? Viu que, como sempre, eu tenho razão? - Keven cuspiu suas palavras agressivas de modo tão feroz que Marina não pôde pensar no que estava fazendo. Uma força poderosa apoderou-a, fazendo-a apontar o cano frio da arma diretamente para o peito de seu "adversário". Agindo novamente, a força a fez apertar o gatilho.
Talvez nem fosse a força. Talvez fosse ela mesma que tivesse que colocar a culpa em algo sobrenatural para justificar suas ações. É, era isso. Ela precisava ter feito aquilo. Olhou satisfeita para o corpo que sangrava manchando ainda mais o carpete.
Mírian riu. Aquela risada agoniante. Marina teria atirado na fantasma se aquela risada não a tivesse trazido para a realidade. Ao ver Keven caído, morto no chão, ela não pode gritar nem chorar, fez apenas o que era necessário: Direcionou a arma para sua cabeça e deu um fim àquela história com apenas um tiro.
Um rapaz alto e moreno apareceu ao lado de Mírian do mesmo modo que ela havia aparecido para os finados adolescentes há poucos minutos atrás. Loucamente, os dois se abraçaram e se beijaram. Jamais ficariam sozinhos.

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